Toda aquela chuva caindo do lado de fora do ônibus fazia parecer que o mundo chorava e compreendia a dor dentro do coração de um homem. A viagem iria demorar e ele ainda teria muito tempo para pensar no quanto a vida tinha sido injusta até agora. O viajante da poltrona ao lado lia uma Bíblia e ao mesmo tempo ouvia blues aos fones de ouvido. Tinha um semblante de serenidade e uma transparência de alguém que compreendia os pesares da vida. Sentiu que não podia perder a oportunidade de conversar um pouco com essa pessoa. Todos os aspectos lhe forçavam a pensar que estava do lado de um sábio que talvez estivesse disposto a lhe ajudar, mesmo que fosse só com alguns conselhos e dicas.
- Er... com licença.
O viajante que lia a Bíblia e escutava música parou com as duas coisas e se virou para ele.
- Opa! Aconteceu alguma coisa?
O sorriso no rosto do viajante fazia dele a pessoa mais simpática do mundo. Isso o impulsionou mais ainda a perguntar o que queria perguntar.
- Na verdade não. Você parece ser um cara que lê muito a bíblia, não é?
- Sempre que viajo. E estou sempre viajando!
Os dois riram juntos.
- Então. Posso lhe fazer uma pergunta esquisita?
- Só se eu puder lhe dar uma resposta esquisita.
Não era só simpático, mas tinha um humor natural que fazia bem aos ouvidos dos outros.
- Passei por maus bocados na minha vida e sempre me pergunto isso, e nunca encontro respostas.
- O que você se pergunta?
- Me pergunto como Deus pode ser uma onipotência benevolente! Sabe. Eu entendo o conceito disso, mas parece haver uma contradição aí.
- Sim. A contradição é a dor. A fome, as guerras, as doenças...
- Exatamente! Coisas terríveis acontecem com as pessoas, e às vezes nem são essas coisas que você citou, mas muitas pessoas sofrem bastante por conta de seus sentimentos. E toda essa tragédia humana é como uma prova de que Deus não pode ser simultaneamente todo-poderoso e bem-intencionado.
O viajante abaixou um pouco a cabeça, parecendo pensar. Mas logo se voltou para ele.
- Você tem filhos?
- Um dia espero ter.
- Imagina se tivesse um filho de oito anos. Você o amaria, certo?
- Mas é claro!
- E faria tudo o que pudesse para evitar que ele sofresse na vida?
- Com certeza.
- E deixaria que ele andasse de skate?
Essa pergunta o intrigou, mas continuou seguindo o raciocínio do viajante.
- Acho que sim. Mas diria a ele para ter cuidado.
- Quer dizer que, como pai desse menino, você lhe daria uns bons conselhos básicos e deixa ria que saísse e cometesse seus próprios erros?
- Eu não ficaria correndo atrás dele para mimá-lo.
- E se ele caísse e relasse o joelho?
- Ele aprenderia a ser mais cuidadoso.
- Então quer dizer que, mesmo tendo o poder de interferir evitar que seu filho sentisse dor, você optaria por demonstrar seu amor deixando-o aprender suas próprias lições?
- Claro, a dor seria parte do seu crescimento. Só assim ele aprenderia.
- Exatamente.
1 comentários on "No Blues de um viajante"
Nagato tornou sua vida mesquinha, mas acertou ao dizer que "para haver paz, o mundo precisa conhecer a dor".
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