terça-feira, 14
Agora me sou todo ideia, garanto. Quando se desbrava o caminho da Sabedoria, ergue-se-lhe a mão do sofrimento, e é impossível seguir adiante sem antes segurá-la. E não há volta.
Eu já fui como você, eu já tive os mais inocentes sonhos entrincheirados em minha pele. Quando jovem, meus olhos fitavam logo à frente um lindo futuro para as pessoas, olhos estes que hoje nada veem adiante ou acima, afinal tudo está abaixo de mim.
Segurei o mundo em minhas costas por muito tempo, recebendo em troca alguns sorrisos. Mais forte, porém, eu sentia a mão do sofrimento à medida em que eu contemplava mais intensa a Sabedoria, e então dos antigos sorrisos formavam-se olhares de inconformismo e hostilidade. Não conseguiam entender-me, por isso eu os deixei partir.
Esteja certo de que eu tenho poder para erguer de volta o mundo, mas não quero. Concedo ao mundo a democracia, concedo-lhe o livre-arbítrio de caminhar para a própria desgraça estampando em face o sorriso antes oferecido a mim. A felicidade é um mero escambo, hoje eu entendo.
Entendo, agora, que minha companhia me basta, pois sou pleno em mim, e nem mesmo o sofrimento teve forças o bastante para continuar a atormentar-me. Agora me sou todo ideia. Agora me sou todo Sabedoria.
•••••••••
Os ombros suportam o mundo
Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.
Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se.
Mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada epseras de teus amigos.
Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
(…)
Carlos Drummond de Andrade
(Sentimento do Mundo. In: Poesia e prosa (organizada pelo autor).
Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1988. Volume único.)
•••••••••
Eu esperava escrever algo completamente diferente para vocês, mas este texto explodiu dentro de minha cabeça quando eu li Drummond, há algumas semanas.
Abraços e até outubro.
0 comentários on "Sobre o Ego"
Postar um comentário